Por Rosane Menezes Lohbauer e Rodrigo Machado Moreira Santos
Uma pretensão anunciada pelo Governo do Presidente em exercício vem causando polêmica: a “securitização” da dívida parcelada da União. Essa possibilidade está prevista em um projeto de lei do Senado Federal – especificamente o PLS nº 204/2016, de autoria do Senador José Serra. O Governo sinalizou que talvez seja apresentado um substituto, aprimorado, mas mantendo o objeto principal: autorizar os entes da federação a ceder direitos creditórios originados de créditos tributários e não tributários, objeto de parcelamentos administrativos ou judiciais. Em suma, a medida autorizará a União (assim como Estados e Municípios) a alienar seu estoque de dívida parcelada, mediante um pagamento parcial “a vista” e vários “a prazo”.
Pedimos vênia para discordar de alguns dos argumentos levantados por diversos críticos à estrutura – ou céticos. O primeiro desses argumentos é de que o ente federado ficaria com uma parcela pequena da dívida ao final. Ora, de início é importante notar que, em se tratando de dívidas parceladas, o ente público inevitavelmente receberá uma parcela “pequena” do crédito, dado que a inadimplência desses créditos é muito relevante. Aliás, as boas práticas orçamentárias ensinam que o ente público sempre deve prever que boa parte dos parcelamentos, de crédito tributário ou de outra natureza, não serão adimplidos pelos seus devedores – em outras palavras: “virarão pó”. Seja porque empresas devedoras entrarão em processo falimentar, seja porque o contribuinte pessoa física simplesmente não possui patrimônio suficiente para arcar com a dívida. Destaca-se que esse processo de esvaimento de uma proporção relevante dos créditos da Administração não sofre qualquer impacto ou influência da operação, dado que a natureza do crédito, assim como a competência para cobrança permanecem inalteradas.
A diferença entre uma situação e outra é que, com a cessão, o ente público consegue receber uma parte desses créditos de pronto, sem abrir mão, contudo, de receber o restante no futuro, caso os créditos sejam realizados. O crédito que geraria um caixa irrisório ao longo de um prazo muitas vezes de mais de 10 anos, pode gerar um caixa relevante para o ente público de imediato, suficiente para fazer frente a importantes investimentos.
Não obstante, é importante destacar que essas operações são extremamente complexas, acompanhadas de perto pelos órgãos de controle dos entes públicos, a fim de evitar desvios, e, em regra, submetidas às estritas normas e à fiscalização da Comissão de Valores Mobiliários – CVM. Não se trata de uma “fórmula mágica” e muito menos de uma manobra contábil criativa. Trata-se de uma operação conhecida do mercado e de entes privados, que se aprimorou para atender às exigências e especificidades da Administração Pública. Simplesmente repelir essa ferramenta adicional de gestão de créditos tanto pela União, quanto pelos Estado e Municípios não nos parece razoável, principalmente em um momento de grave crise fiscal como o atual.
Vale dizer que o ente público não estará, com a alienação, usurpando créditos e/ou receitas futuras. Esses créditos já deveriam ter sido realizados, mas não o foram por inadimplemento dos contribuintes. É um crédito consolidado, não uma expectativa de crédito. A dúvida recai somente sobre o seu pagamento ou não.
Não obstante, insta lembrar que o Projeto de Lei atual – e o substitutivo deve manter a mesma lógica – simplesmente insere um artigo à Lei nº 4.320, de 1964, que “estatui normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal”. Não revoga nenhuma disposição dessa norma ou da Lei de Responsabilidade Fiscal - LFR (nem poderia, dado que a LRF é lei complementar e o projeto é de lei ordinária). Ou seja, não se suprime, com a nova norma, nenhum dos controles e limites normativos já existentes, mas simplesmente esclarece-se a possibilidade de os entes federados realizarem operações desse tipo.
Por fim, lembra-se que os Estados do Rio Grande do Sul, de São Paulo e de Minas Gerais, assim como o município de Belo Horizonte já fizeram operações desse tipo com sucesso, tendo gerado caixa para investimentos, garantias em PPP’s entre outras, que não seriam possíveis sem a alienação dos direitos creditórios. Essas operações se lastraram em leis autorizativas locais (estaduais ou municipais, conforme o caso), as quais nunca foram questionadas e permanecem plenamente vigentes e eficazes. O Projeto de Lei – ou o substitutivo que vier a ser apresentado – vai consolidar a segurança jurídica dessas operações, contribuindo para um quadro mais estável e gerando maior confiança de investidores. Isso, pelos olhos dos autores, deve ser encarado como favorável.
Não nos parece, portanto, que estamos diante de uma fórmula mágica ou de uma manobra de “contabilidade regulatória”, mas da criação de uma efetiva ferramenta adicional de gestão de orçamento e de créditos pela Administração Pública – que utilizará estruturas de mercado a seu favor.
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