Marcelo Cosac


Pouco se comenta atualmente sobre a aplicação, e os possíveis efeitos lesivos ao credor, do Parágrafo 5º do Artigo 27 da Lei nº 9.514/97, que criou a alienação fiduciária do bem imóvel. O Artigo 27 estabelece os procedimentos que devem ser observados pelo credor na execução da alienação fiduciária do imóvel, incluindo a necessidade de venda do imóvel, apuração do valor obtido com a venda, e devolução de eventual saldo ao devedor, caso existente após a utilização dos recursos para a liquidação do saldo devedor ao credor. O credor deve colocar à venda o imóvel no primeiro leilão por seu valor contratado com o devedor, e caso não obtido lance suficiente para cobrir tal valor mínimo, segue-se ao segundo leilão nos quinze dias subsequentes, quando o imóvel será ofertado pelo valor mínimo equivalente ao saldo devedor do respectivo contrato de dívida/financiamento, acrescido das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais. Caso, em tal oportunidade não se obtenha lance em valor equivalente ao valor mínimo, considerar-se-á extinta a dívida, exonerando-se o devedor da obrigação pelo pagamento do eventual saldo remanescente ao credor, devendo ainda o credor, no prazo de cinco dias da realização do segundo leilão, dar quitação ao devedor. Esta é a razão, portanto, de tal dispositivo ser conhecido como o “perdão legal”.


À primeira vista, o leitor poderia concluir que se trata de um dispositivo legal pró-devedor exclusivamente. Contudo, uma análise mais detida do referido dispositivo e dos motivos por trás de sua inserção na Lei nº 9.514/97 dá ao leitor uma idéia mais clara dos seus objetivos e efeitos, sem prejuízo de que ainda se possa concluir que tal dispositivo, se aplicado de forma irrestrita e a qualquer situação, pode causar grave distorção.


É verdade que a alienação fiduciária do bem imóvel conferiu maior proteção ao credor, uma vez que, quando comparada à tradicional hipoteca, oferece algumas vantagens, a começar pelo fato de que, na sua constituição, destaca do patrimônio do proprietário do imóvel, que geralmente (mas não necessariamente) é o próprio devedor, a propriedade plena do imóvel, em favor do credor, até que a dívida para a qual a garantia foi constituída tenha sido integralmente paga. Em termos práticos, quando comparada à hipoteca, a alienação fiduciária confere maior segurança ao credor nas hipóteses de falência, insolvência, ou mesmo recuperação judicial do proprietário do imóvel, já que a alienação fiduciária exclui o imóvel do acervo dos bens que responderão pelas dívidas gerais do falido. Ademais, com a alienação fiduciária o credor conta com um expediente célere, prático e menos oneroso (quando comparada com a tradicional execução judicial de garantias), de execução da garantia, autorizando o credor a conduzir todo o processo extrajudicialmente.


Na concepção da Lei nº 9.514/97 - o que fica claro em seu Projeto de Lei, o que claramente se cogitou foi de que a alienação fiduciária se aplicasse exclusivamente ao mercado habitacional, não servindo para garantir quaisquer outras dívidas que não estivessem relacionadas à aquisição do próprio imóvel residencial pelo mutuário. Ou seja, tendo em vista o relevante alcance social desses financiamentos, o legislador imputou ao credor tal mecanismo compensatório, que lhe dava, por um lado, a prerrogativa de acelerar a recuperação do seu crédito, mas, por outro lado, restringiu o alcance de seu crédito ao produto da venda do imóvel em leilão. Portanto, em não sendo possível a obtenção pelo credor de um valor suficiente para cobrir seu crédito, ficará o devedor exonerado do pagamento de eventual saldo devedor, e o credor, por seu turno, então como proprietário pleno do respectivo imóvel, autorizado a aliená-lo como bem entender.


Ocorre que, em 2004, com a promulgação da Lei nº 10.931, a aplicação da alienação fiduciária foi estendida para garantir as obrigações em geral, não ficando mais restrita às obrigações oriundas de negócios imobiliários. Entretanto, o legislador não tomou o cuidado necessário para excluir do alcance da aplicação do perdão legal as obrigações que não decorram de financiamentos habitacionais, dando, portanto, margem a que o perdão legal seja aplicado pelo Poder Judiciário de forma ampla e irrestrita. Clássico exemplo disso seria a utilização da alienação fiduciária em um project finance, como uma das garantias do volumoso pacote de garantias com o qual um projeto dessa espécie geralmente conta. Situação esdrúxula, portanto, seria admitir-se que o devedor pudesse ser agraciado com o perdão da dívida, no caso de insucesso na obtenção, na venda em leilão do imóvel, de um valor suficiente para se cobrir o valor total do saldo devedor do respectivo empréstimo. Ora, em um project finance, o credor geralmente conta não só com a garantia sobre o imóvel onde o projeto esteja instalado, mas também com diversas outras garantias, como os equipamentos necessários ao desenvolvimento do projeto e a própria receita oriunda da operação do projeto. Portanto, a aplicação do Parágrafo 5º do Artigo 27 da Lei nº 9.514/97, sem se levar em consideração o contexto onde a referida garantia de alienação fiduciária do imóvel se situa, seria o mesmo que ignorar a concepção como um todo do project finance. Uma situação como essa certamente levaria o credor a optar pela constituição de hipoteca em lugar da alienação fiduciária, para não ficar a mercê de uma situação de insegurança jurídica de tal magnitude.


Muito se discutiu à época sobre a necessidade de se emendar a Lei nº 9.514, a fim de se corrigir referida distorção, e definitivamente coibir a aplicação irrestrita do perdão legal. Houve, inclusive, uma tentativa, porém ainda sem êxito, de se estipular ressalvas à aplicação do perdão legal via o Projeto de Lei nº 1.070, de 2007, que propôs a exclusão das operações de financiamento não-habitacional e de auto-financiamento, como é caso dos consórcios, do alcance do perdão legal. No caso dos consórcios de imóveis, com a promulgação da Lei nº 11.795, em 08 de outubro de 2008, que regulamenta o sistema de consórcios, tal distorção foi definitivamente corrigida, mediante a inclusão da obrigação de o consorciado quitar eventual saldo devedor após a execução da garantia de alienação fiduciária sobre seu imóvel, caso o valor obtido com a venda em leilão não seja suficiente para liquidar todo o saldo devido pelo consorciado.


De toda sorte, a redação do perdão legal não comporta ressalvas, e, portanto, seria recomendável que uma emenda fosse aprovada para evitar eventual aplicação inapropriada do dispositivo legal. Ademais, a aprovação de uma emenda com as ressalvas necessárias à aplicação do perdão legal certamente implicaria em um incentivo ao aumento da utilização da garantia de alienação fiduciária pelos agentes de mercado, cumprindo, portanto, com o propósito da Lei nº 10.931, que estendeu sua aplicação às obrigações em geral, inclusive as empresariais.


* Marcelo Cosac é Sócio da Tauil & Chequer Advogados Associado a Mayer Brown

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