Por Alexei Bonamin e Marcus Vinicius Pimentel da Fonseca, do escritório TozziniFreire Advogados
Publicado originalmente no Anuário Uqbar 2015: Finanças Estruturadas.
Produto de grande importância na evolução do mercado de capitais brasileiro, o Fundo de Investimento em Direitos Creditórios – FIDC surgiu como um atraente instrumento de securitização e de captação de recursos no Brasil. Após um período de desuso no ano de 2012 (com captação negativa na indústria) em razão da constatação de supostas irregularidades incorridas por meio de sua utilização, passou a ser visto novamente como uma das principais apostas no mercado de capitais brasileiro em razão da recente transição regulatória por qual tem passado com o objetivo de assegurar uma maior segurança e transparência aos investidores.
Um dos principais atrativos dos FIDCs do ponto de vista do investidor, principalmente quando considerado o contexto atual de volatilidade econômica, corresponde ao fato de possuírem elevada rentabilidade frente a outros investimentos de risco semelhante e, no caso de FIDCs voltados para projetos de infraestrutura, de terem ainda uma grande vantagem tributária em relação a outros tipos de investimento. Já na perspectiva das empresas originadoras de direitos creditórios, o produto representa em muitos casos o primeiro ponto de contato com o mercado de capitais e a vantagem de a captação de recursos possuir um custo menor do que o de outras fontes, sobretudo do financiamento puramente bancário. Ainda, as empresas originadoras podem se utilizar dos FIDCs para gestão de caixa, financiamento de fornecedores, entre outras vantagens.
Os primeiros FIDCs foram registrados na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) em 2002, um ano após a edição da Resolução nº 2907 do Conselho Monetário Nacional (CMN) de 29 de novembro de 2001, e da Instrução CVM nº 356, de 17 de dezembro de 2001, que autoriza e regulamenta, respectivamente, a constituição e o funcionamento dos FIDCs, tendo sido lançados dois fundos com volume total de R$ 150 milhões. Nos anos seguintes, o número de emissões cresceu exponencialmente, atingindo apenas no ano de 2006 sessenta e sete ofertas registradas e um volume total de R$ 12,78 bilhões, o maior volume já registrado.
O crescimento das ofertas de FIDC ao longo dos anos foi acompanhado por uma diversificação de setores. Entre os anos de 2005 e 2008, a indústria de FIDC apresentou crescimento de 32% ao ano, segundo dados da CVM. Nos primeiros anos, houve a concentração de FIDCs que tinham como objetivo adquirir direitos creditórios originados de crédito consignado, operações mercantis e de financiamento de veículos. Posteriormente, surgiram FIDCs voltados para os setores de energia elétrica, industrial, educacional e agropecuário. Nos anos seguintes, verificou-se uma maior diversificação representada por operações de FIDCs não-padronizados, regulados pela Instrução CVM nº 444, de 8 de dezembro de 2006, bem como os FIDC multisetoriais. Logo em seguida, foram observados alguns ciclos como os dos setores varejistas e de saneamento.
A partir de 2010, a indústria de FIDCs enfrentou uma série de problemas com a descoberta de supostas irregularidades envolvendo FIDCs dos bancos Cruzeiro do Sul, BVA, entre outros, e o FIDC da empresa de factoring Union National.
Em razão destas supostas irregularidades, diversos bancos e investidores afastaram-se momentaneamente desta modalidade de investimento e o número de ofertas de cotas de FIDC entrou em queda, sendo que no primeiro semestre de 2013, a CVM havia registrado apenas cinco ofertas, com volume de R$ 877,5 milhões. E foi nesse momento que veio a resposta regulatória com a edição da Instrução CVM nº 531, de 6 de fevereiro de 2013, que alterou dispositivos da Instrução CVM nº 356, por meio da qual procurou-se estabelecer regras mais rígidas de forma a mitigar estruturas que propiciavam a ocorrência de conflito de interesses nos FIDCs e aperfeiçoar os controles por parte dos administradores e dos demais prestadores de serviço dos FIDCs. A Instrução CVM nº 531 foi ainda objeto de esclarecimentos no âmbito dos Processos CVM nº RJ-2012-13220 e nº 15177, por meio dos quais a CVM reafirmou a rigidez das regras em relação a estruturas que possam gerar situações de conflito de interesses entre as partes atuantes nos FIDCs. Além disso, a CVM também revisitou as mudanças trazidas pela Instrução CVM nº 531 por meio da edição do Ofício Circular/CVM/SIN/Nº 5/2014, que tratou, dentre outros assuntos, sobre a verificação dos lastros de direitos creditórios pelos custodiantes de FIDCs.
Vale lembrar que, desde 2011, a CVM havia editado a Instrução nº 489, de 14 de janeiro de 2011, que teve como objetivo consolidar e padronizar as regras contábeis aplicáveis a FIDCs, de forma a permitir uma maior clareza dos riscos envolvidos com o investimento nos fundos.
Dentre as principais inovações trazidas pela Instrução CVM nº 531, destacam-se as novas obrigações dos custodiantes que, durante o funcionamento do FIDC, deverão obrigatoriamente verificar, em periodicidade trimestral, a documentação que evidencia o lastro dos direitos creditórios (salvo em algumas hipóteses trazidas pela regra), além de ter que cobrar e receber, em nome do FIDC, pagamentos, resgate de títulos ou qualquer outra renda relativa aos títulos custodiados, depositando os valores recebidos diretamente em conta de titularidade do FIDC, ou conta especial instituída pelas partes junto a instituições financeiras (escrow account), proibindo assim a utilização de contas de livre movimentação de titularidade das cedentes de direitos creditórios. Ainda de acordo com a Instrução CVM nº 531, o custodiante apenas pode contratar prestadores de serviços para verificação de lastro dos direitos creditórios e para a guarda da documentação relativa aos direitos creditórios, sem prejuízo de sua responsabilidade, sendo que os prestadores de serviço contratados não podem ser originadores ou cedentes dos direitos creditórios, nem consultores especializados e gestor do FIDC.
No caso de contratação de prestadores de serviços, o custodiante deve possuir regras e procedimentos adequados, por escrito e passíveis de verificação, para permitir o efetivo controle sobre a movimentação da documentação relativa aos direitos creditórios e demais ativos sob guarda do prestador de serviço contratado, bem como diligenciar o cumprimento, pelo prestador de serviço contratado, no que se refere à verificação de lastro e à guarda da documentação relativa aos direitos creditórios.
Ademais, a Instrução CVM nº 531 exigiu a obrigatoriedade de enquadrar determinados atributos dos direitos creditórios como critérios de elegibilidade, a saber, aqueles validados a partir de informações que estejam sob o controle do custodiante, que estejam sob o controle dos prestadores de serviço contratados pelo custodiante, ou que possam ser obtidas por meio de esforços razoáveis. É importante frisar que agora ficou vedada à instituição administradora do FIDC, gestor, custodiante e consultor especializado, ou às suas partes relacionadas, ceder ou originar, direta ou indiretamente, direitos creditórios aos FIDCs nos quais atuem.
Outras novidades incluem novas obrigações da instituição administradora do FIDC, que deve agora possuir regras e procedimentos adequados, por escrito e passíveis de verificação, que lhe permita verificar o cumprimento, pela instituição responsável, da obrigação de validar os direitos creditórios em relação às condições de cessão. No caso de contratação de serviços de consultoria especializada, gestão da carteira do FIDC, custódia, e agente de cobrança dos direitos creditórios cedidos, a instituição administradora também deve possuir regras e procedimentos que lhe permita diligenciar o cumprimento, pelo prestador de serviço contratado, de suas obrigações. Adicionalmente, caso a instituição administradora acumule as funções de gestão e de custódia do FIDC, deve manter total segregação de tais atividades nos termos da regulamentação aplicável aos administradores de carteira de valores mobiliários.
Contudo, os novos requisitos da Instrução CVM nº 531 impactaram momentaneamente a indústria de FIDCs devido aos desafios relacionados à adaptação às novas regras, principalmente a adequação dos sistemas operacionais de administradores e custodiantes, e à estrutura de custos advindos desses novos requisitos.
Não obstante os desafios que surgiram, a partir de 2014 o número e o volume de FIDCs emitidos até julho voltaram a crescer em relação ao mesmo período de 2013, segundo dados da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (ANBIMA).
Em suma, é certo que algumas questões ainda precisam ser enfrentadas pela indústria de FIDCs para uma melhor percepção de risco, como por exemplo, o excesso de critérios de elegibilidade para aquisição de direitos creditórios e o crescimento agressivo das carteiras. Entretanto, há atualmente uma tendência de crescimento do produto, evidenciada principalmente pelos novos FIDCs voltados para os setores de saneamento, infraestrutura, e comércio. Dentre as recentes operações, vale destacar os FIDCs da Companhia Pernambucana de Saneamento – Compesa e da Saneamento de Goiás S.A. – Saneago, que possuem total aderência aos novos requisitos da Instrução CVM nº 531, e adquiriram direitos creditórios originados por meio da prestação de serviços de captação, tratamento, distribuição de água potável, transporte e tratamento de esgotos. Por fim, a melhoria na percepção de risco pelas agências de rating, bem como o papel da CVM em consolidar entendimentos relativos à nova regulamentação completará a estrutura necessária para crescimento contínuo do produto nos próximos anos.