Em meio aos esforços atuais do governo federal no sentido de diminuir o rombo do déficit fiscal primário atual, a chamada securitização de dívida ativa ganha relevância e é noticiada como parte da pauta principal de discussões entre a equipe econômica e a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, e entre o ministro da fazenda e o presidente do Tribunal de Contas da União. Agora parece que é pra valer, mas será?

Sejam quais forem as causas e motivações, o histórico recente destas discussões, no âmbito do legislativo, e também com base em algumas manifestações de caráter técnico-normativa, não vinha se mostrando auspicioso. Confusões de conceitos financeiros ameaçavam se tornar empecilhos intransponíveis ou criar expectativas irrealistas. Na verdade, securitização de dívida ativa já está ocorrendo, aparentemente, de forma satisfatória do ponto de vista do ente público captador de recursos. Porém, do ponto de vista de desenvolvimento do mercado de capitais, de forma sub-ótima, com implicações de aumento de custo sistêmico nem sempre bem compreendidas.

Com o intuito de contribuir com o processo de viabilização das operações de securitização de dívida ativa como importante e essencial ferramenta de gestão financeira por parte dos entes públicos, este artigo discute quatro conceitos financeiros associados a estas operações que ainda geram leituras equivocadas, e conclui apontando a atual questionável resolução de mercado quanto ao melhor veículo sendo utilizado. Devido ao tamanho limitado do artigo, os pontos são desenvolvidos de forma resumida e se mantêm atinentes ao essencial.

O primeiro conceito financeiro básico que finalmente parece encontrar um maior consenso em seu entendimento por parte de todos envolvidos é o de que uma venda, ou cessão, de ativos financeiros, como créditos tributários a receber, por si só, não é uma operação de crédito, e sim de antecipação de recursos. Além disto, caso os referidos créditos tributários estejam vencidos e ainda não pagos, ou vencidos e renegociados, o fato gerador destes já terá ocorrido e a sua venda se caracterizará mais precisamente com uma operação de captação de recursos através da recuperação de valor de ativos vencidos.

O segundo conceito financeiro básico, que, diferentemente do primeiro, parece ainda distante de uma compreensão que seja consensual, diz respeito a um tipo de reforço de crédito, aquele suprido pelo cedente de uma operação de securitização. Se o ente público que vendeu sua dívida ativa para uma entidade emissora de títulos de securitização se comprometer, formalmente, a recomprar ou substituir créditos que se tornaram novamente inadimplentes, um passivo terá sido estabelecido, caracterizando o ente público como devedor. Mas, na ausência de uma formalização jurídica de compromisso, tal reforço de crédito se torna meramente opção do ente público e, ao menos sob a perspectiva de investidores de títulos desta operação de securitização, nunca deveriam ser considerados como tal.

Porém, a prática do reforço de crédito da recompra/substituição, por parte de um ente público que tenha vendido dívida ativa mas não formalizado juridicamente tal compromisso, tem sido avaliada como algo que pode impactar a aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Na verdade, tal possibilidade seria melhor avaliada e monitorada na medida em que crescesse a transparência, detalhada e tempestiva, nestas operações. Por ora, como proteção à LRF, como condição para as operações de securitização de dívida ativa, a tendência parece ser a de que haverá uma necessidade de comprometimento explícito do ente público de que este não proverá qualquer reforço de crédito na forma de recompra/substituição de créditos inadimplidos.

O terceiro conceito financeiro subjacente às operações de securitização de dívida ativa que vem suscitando comentários pouco realistas se refere ao dimensionamento apropriado das respectivas captações potenciais de recursos pelos entes públicos. Comparações simplificadas com o valor consolidado contabilizado do estoque de dívida ativa, o qual não guarda relações com valor econômico “justo”, levam a estimativas largamente superestimadas. Uma metodologia contábil que refletisse um valor “justo” deveria se fundamentar, em grande parte, no desempenho histórico do fluxo de pagamento das carteiras de dívida ativa, e este último tem se provado pífio, quase nulo, para a dívida ativa original, mas relevantemente valioso para algumas carteiras de dívida ativa refinanciada, embora estas representem apenas uma parcela pequena da dívida ativa total.

Assim, um dimensionamento realista do potencial de captação de um ente público através de operações de securitização de dívida ativa deveria se basear somente naquela parcela, minoritária, de créditos recuperáveis, sendo que a grande maioria destes últimos se encontram entre as carteiras de dívida ativa refinanciada. Porém, além da questão do dimensionamento apropriado destas carteiras, é importante destacar que, assumindo uma eficiência mínima de mercado, não é este o ponto que deveria ser o foco único, ou mesmo principal, dos entes públicos. Isto porque uma variável protagonista para o planejamento financeiro dos entes públicos é o custo de captação, o que nos leva ao quarto conceito financeiro pouco compreendido nas operações de securitização de dívida ativa.

O principal reforço de crédito que tende a ser utilizado nas operações de securitização de dívida ativa é a subordinação. Mas como o ente público atua como o investidor subordinado, todo excesso de rentabilidade de uma carteira de dívida ativa retornará para o mesmo. Desta forma, o preço de cessão negociado para uma carteira de dívida ativa tende a ser secundário em importância. O processo decisório do ente público cedente de uma carteira de dívida ativa deveria se fundamentar principalmente em três variáveis: 1) o custo a ser pago para investidores terceiros, ou seja, a rentabilidade dos títulos sênior a serem emitidos; 2) o montante líquido a ser captado de investidores terceiros, que impactará (1); e 3) o custo de intermediação, ou seja, o custo de estruturação e distribuição. Normalmente, (1) determina (2), ou seja, o ente público optará por captar ao menor custo possível e, dependendo do tamanho de sua carteira securitizável e do nível de subordinação exigível pelo mercado, poderá captar um determinado montante de investidores de títulos sênior. Assim, a estruturação da operação é dimensionada de tal forma que haja um nível de subordinação suficientemente alto para que investidores adquiram títulos sênior com uma rentabilidade muito próxima daquela compatível com o risco de crédito do ente público cedente. Isto porque o fluxo de pagamentos da dívida ativa, o qual pagará os investidores dos títulos sênior, depende operacionalmente do ente público. Quanto à subordinação necessária na operação, isto é secundário do ponto de vista financeiro do ente público, já que todo excesso de rentabilidade da carteira retornará ao mesmo por conta de sua posição como subordinado.

Além de todos os conceitos financeiros inerentes às operações de securitização de dívida ativa, vale concluir retomando um outro ponto fundamental ainda pouco discutido e compreendido, mas já abordado aqui de forma ampla. As operações vigentes e sendo estruturadas utilizam empresas pertencentes ao ente público, as quais emitem debêntures. O principal veículo de securitização do mercado de capitais brasileiro, os Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC), tem sido preterido. A razão para tanto, paradoxalmente, reflete a existência de um maior número de exigências regulamentares no caso do FIDC, exigências estas que se consolidaram como fruto de um processo sadio e avançado de desenvolvimento de mercado e de maior proteção para o investidor. Porém, tal desenvolvimento deixa de fazer sentido na medida em que se faz possível a estruturação de operações similares com veículos alternativos, uma arbitragem regulatória que implica em um contrassenso do ponto de vista de desenvolvimento de mercado.  

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