No início de 2011 a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) estabeleceu novo patamar de transparência para o mercado de securitização com a publicação da Instrução nº 489, a qual definiu novas normas para a elaboração e divulgação das demonstrações financeiras dos Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC), principal veículo de securitização no país.
Além de critérios contábeis, um novo modelo de Informe Mensal (IM), documento entregue mensalmente pelos administradores destes fundos, foi criado com o objetivo de divulgar uma grande quantidade de informação sobre os ativos de FIDC e desempenho destes. A iniciativa não poderia ser mais apropriada. Apesar de um custo adicional que esta nova exigência poderia trazer ao mercado, estavam estabelecidas as bases para uma novo nível de informação de operações de securitização no mercado brasileiro.
Porém, se a intenção foi das melhores, uma outra exigência regulamentar, a classificação das operações com os direitos creditórios, criou uma situação que fez com que o objetivo desejado ainda não tenha sido alcançado satisfatoriamente.
Segundo a instrução, os fundos cujos exercícios sociais foram iniciados em ou após 1º de agosto de 2011 são obrigados a encaminhar suas informações mensais conforme o novo modelo. Neste documento, uma informação crucial passou a ser a classificação dos direitos creditórios em duas grandes categorias: os “Direitos Creditórios com Aquisição Substancial dos Riscos e Benefícios” e os “Direitos Creditórios sem Aquisição Substancial dos Riscos e Benefícios”. Esta nova classificação dos direitos creditórios, apesar de existir há mais de um ano, parece ainda causar certa confusão e produz informações inconsistentes em relação a pelo menos um indicador basilar da indústria, o montante de Provisões para Devedores Duvidosos (PDD).
Os números de janeiro de 2012, mês a partir do qual muitos administradores de fundos passaram a divulgar informações no novo modelo, exemplificam bem essa situação. Cinquenta fundos que mudaram para o novo modelo naquele mês deixaram repentinamente de apresentar valores de PDD no Informe Mensal, sendo que nos meses anteriores, os dados de PDD destes fundos, que vinham sendo divulgados no antigo modelo de informe, eram consistentemente não nulos.
Desse total, 33 FIDC preencheram apenas os campos de direitos creditórios sem aquisição substancial de riscos ou benefícios. Para este grupo de fundos, subentende-se que, em função agora da categoria dos direitos creditórios, não há mais PDD ou, na nova terminologia, “Provisão para Redução no Valor de Recuperação”, não havendo sequer espaço próprio para este tipo de lançamento no novo modelo do informe. O campo para preenchimento do valor de “Provisão para Redução no Valor de Recuperação” é um dos sub-itens apenas do item “Direitos Creditórios com Aquisição Substancial de Riscos e Benefícios”.
Os outros dezessete fundos indicaram que seus direitos creditórios foram adquiridos com aquisição substancial de riscos e benefícios, mas, mesmo assim, não divulgaram valores de PDD. Tendo em vista que, para a maioria destes cinquenta fundos, independente da categoria de DC escolhida, este súbito desaparecimento das provisões parece não estar sendo refletido no valor das cotas, uma vez que não se percebeu nestes mesmos fundos uma elevação correspondente dos seus respectivos patrimônios líquidos, tudo leva a crer que as provisões continuam sendo calculadas e consideradas no valor das cotas, tratando-se apenas de uma situação onde a qualidade da informação deteriorou-se. De fato, nos balancetes publicados de 49 dos 50 fundos mencionados acima continuam sendo divulgados valores de PDD.
Esta situação já havia sido apontada pela Uqbar no artigo “Dados no novo Informe Mensal para FIDC geram dúvidas”, publicado em 29 de novembro de 2011. Nele há uma análise de como as informações dos FIDC estavam sendo disponibilizadas no novo informe e chama a atenção para as inconsistências detectadas no preenchimento do documento em questão.
Uma ação do órgão regulador visando esclarecer os critérios de cálculo e divulgação deste importante indicador do mercado se faz necessária e urgente. Esta situação claramente vai contra os objetivos da norma que colocou o mercado de FIDC em níveis comparáveis aos de outros importantes mercados internacionais de securitização em termos de transparência da informação.
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Em tempo, vale registrar aqui a posição da Uqbar com relação à classificação das operações com direitos creditórios.
Em duas ocasiões, quando das audiências públicas para a norma em questão, a Uqbar parabenizou a inciativa mas discordou respeitosamente de alguns dos critérios propostos, e atualmente vigentes na norma, de classificação das operações com os direitos creditórios nas quais o fundo não adquire substancialmente todos os riscos e benefícios de propriedade do direito creditório.
No ponto de vista da Uqbar, a aquisição de cotas subordinadas pelo cedente, assim como recompras e substituições de direitos creditórios inadimplentes pelo mesmo, não deveriam fazer parte destes critérios se inexistirem obrigações formais do cedente de fazê-los, por não constituírem uma forma de obrigação da parte deste. Abaixo transcrevemos trechos de nossa carta à autarquia que apresentam nossos argumentos.
“Em securitização, cotas subordinadas não representam garantias. Trata-se de um mecanismo de reforço de crédito para as cotas de classe sênior, utilizado para mitigar, mas não eliminar, os riscos da carteira de ativos que lastreiam a operação. Por causa deste mecanismo, os investidores dos títulos de classes mais sênior passam a contar com uma menor exposição ao risco de crédito da carteira de ativos que lastreiam a operação.
É equivocado o raciocínio de que o cedente, ao subscrever cotas subordinadas, compensará o Fundo pelas perdas de crédito (final do 4º parágrafo da seção II da Nota). Após a subscrição de cotas subordinadas, o cedente tem um ativo (cotas) e não um passivo contra o Fundo. Ao ceder definitivamente a carteira de ativos para o Fundo e investir em cotas subordinadas, o cedente limitou seu risco ao valor destas. As cotas sênior continuam correndo o risco de crédito da carteira de ativos do Fundo. Contam porém com o benefício de um reforço de crédito proveniente das cotas subordinadas.”
“Entendemos também que fundos que não contam em seu regulamento com um compromisso formal de recompra ou substituição por parte do cedente ou de outros terceiros não deveriam ter seus ativos classificados como “operações sem aquisição substancial dos riscos e benefícios”. Em nossa Carta Resposta SNC01/09 fornecemos exemplos de situações reais, nas quais torna-se difícil argumentar que um Fundo não tenha adquirido os riscos e benefícios de propriedade dos seus ativos, uma vez que inexiste um compromisso formal por parte do cedente. Nossa proposta é que um ativo seja classificado na condição “operações sem aquisição substancial dos riscos e benefícios” somente em situações nas quais exista um compromisso claro e formal do cedente ou outros terceiros em assumir perdas.”