Em dia de pauta volumosa a ser votada no Senado Federal (Senado), começando pelo segundo turno da votação da importante Proposta de Emenda à Constituição 241/55 que estabelece um teto para o reajuste anual nominal de boa parte dos gastos públicos, está programado também, provavelmente na sequência, a votação do Projeto de Lei do Senado 204 (PLS 204), que legisla a cessão de dívida ativa por parte dos entes federados. Esta iniciativa legislativa, de primeira autoria do então senador José Serra e de conteúdo original bastante similar àquele da lei estadual paulista (Lei 13.723) que viabilizou operações de securitização de dívida ativa já realizadas pelo Estado de São Paulo, sofreu várias alterações recentes durante os trâmites no Senado anteriores à votação em plenário. Apesar do avanço operacional que possa representar esta chancela legislativa pelo Senado para as captações de valiosos recursos atualmente por parte dos entes federados, o muito provável desconhecimento da assessoria dos senadores das variáveis chave do desenvolvimento robusto e sustentável do mercado de capitais acarretou em uma perda de destaque, ou mesmo um desaparecimento das referências aos Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC) em meio aos substitutivos que transformaram o texto original do PLS 204.

O FIDC é o principal veículo de securitização existente no país. Conforme amplamente debatido, discutido e divulgado pela Uqbar através de seus diversos canais de interação com o mercado, seja em inúmeros eventos educacionais ou por intermédio de sua plataforma informacional, incluindo este TLON, hoje o FIDC e seu respectivo marco jurídico-regulamentar representam o estágio mais avançado do universo de securitização brasileiro. Tal estágio, que tem como parâmetro principal de avaliação de qualidade a proteção do investidor, foi conquistado em função de rica experiência prática de mercado, incluindo dolorosas lições. Pois quando chega um momento importante de se utilizar dos benefícios de tal desenvolvimento de mercado, motivações secundárias e equivocadas parecem ditar a perda de protagonismo do FIDC, acarretando potencial aumento de custo para os entes federados e de risco para os investidores.

A Instrução CVM nº 444 (ICVM 444) normatiza os FIDC Não Padronizados (NP), aqueles que adquirem direitos creditórios não regulares, entre os quais, conforme listado pela própria norma, direitos creditórios decorrentes de receitas públicas originadas ou derivadas de entes federados. Ao final de 2014, por conta de uma tentativa de uma operação de securitização de dívida ativa do município de Nova Iguaçu, RJ, através de um FIDC NP, onde aquele ente público se comprometia em prover um reforço de crédito de coobrigação (se caracterizando como passivo financeiro ou operação de crédito) à carteira securitizada, sem que houvesse autorização especí­fica do Ministério da Fazenda, conforme exigência da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e de norma da CVM, o Tribunal de Contas da União (TCU), extrapolando, determinou à CVM a suspensão não só do registro daquele fundo, mas de todos os FIDC-NP que adquirissem créditos decorrentes de receitas públicas. Jogaram fora o bebê junto com a água suja.

O TCU, aparentemente de forma inefetiva e, no entendimento da Uqbar, sem sentido, produziu decisões que acusam as operações de securitização de dívida ativa, indiscriminadamente, operações de crédito, as quais, como tais, sempre necessitariam de anterior verificação do não desenquadramento dos limites impostos pela LRF. Como no caso específico de uma operação estruturada de FIDC NP o TCU estava correto, e como não houve um movimento institucional em defesa dos FIDC NP, cujas operações não precisam de forma alguma de serem estruturadas como foi estruturado o FIDC NP Nova Iguaçu, fica a impressão da estigmatização deste veículo no contexto das operações de securitização de dívida ativa, o que seria lamentável, como veremos a seguir.

As operações de securitização de dívida ativa que já vêm ocorrendo têm sido estruturadas através de Sociedades de Propósito Específico (SPE), de propriedade, direta ou indireta, dos próprios entes públicos captadores, e por intermédio de emissões de debêntures. Distinto dos FIDC, estas SPEs não se submetem à regulação pela CVM e nem contam com administradores e custodiantes que funcionem debaixo do radar do Banco Central. Ademais, delas não é exigido um regime informacional amplo, intenso, detalhado e tempestivo sobre seu desempenho, seu patrimônio e sua estrutura, tal qual ocorre, após quinze anos de prática e desenvolvimento, em relação aos FIDC NP. Por fim, fica a questão nem tão retórica assim: o que ocorre caso os debenturistas de uma SPE que securitizou dívida ativa fiquem a ver navios, em decorrência, por exemplo, da insuficiência de fluxo de pagamentos dos contribuintes? Poderia o ente público ser atingido em tal circunstância? Haveria, por esta perspectiva, alguma vulnerabilidade à luz da LRF?

O FIDC, NP ou não, é um condomínio, neutro do ponto de vista fiscal, sendo seus cotistas seus donos, e não credores. Portanto, não há dívida do fundo para com seus investidores. O administrador de um FIDC, que é vedado pela norma de uma série de ações que configuram conflito de interesse, deve calcular, com base em metodologia de preço justo, o valor das cotas do fundo. Dentre o conjunto de informações exigíveis de um FIDC, de responsabilidade de divulgação de seu administrador, um relatório mensal é publicado na CVM contendo, entre outros, dados de composição de carteira, de inadimplência, de recompra, substituição e negociação de direitos creditórios e de valor de cotas. Assim, não há como comparar a prática da transparência e o nível de proteção do investidor que vigoram em operações de FIDC com a qualidade destes fatores em operações de securitização estruturadas através de outros veículos. E maior transparência da operação e maior proteção do investidor se traduz em menor risco dos títulos de securitização emitidos e em menor custo de captação para o ente público. Eis aquele que deveria ser o objetivo final!

Recentemente, auspiciosas indicações por parte do regulador das entidades privadas de previdência regulamentar apontam para a inclusão dos FIDC NP entre as possibilidades de alocação de investimentos por parte deste relevante segmento de investidores institucionais, derrubando esta suposta barreira para a captação por parte destes veículos. Desta forma, o racional de que a distribuição de títulos emitidos por FIDC NP é mais difícil tende a cair por terra.

Mesmo na contramão do desenvolvimento saudável do mercado de capitais, os entes públicos, favorecendo estruturas das quais são os únicos donos e, por isto, são devedoras, optam por buscar junto ao poder legislativo um marco para as operações de securitização de dívida ativa que não ressalte o papel relevante do FIDC. Muito pelo contrário, são as SPEs que permaneceram explicitamente mencionadas depois da transformação engendrada através da criação dos substitutivos do PLS 204 que serão votados hoje. Não só isto como, para fortalecer a atratividade das operações de securitização de dívida ativa por meio de SPE, também será votado a agora possível dedução de despesas financeiras para fins de cálculo do PIS e COFINS, uma desvantagem das SPE que existia na comparação com as operações de FIDC.

Securitização de dívida ativa é uma fundamental ferramenta de gestão fiscal que deve ser sempre considerada pelos entes públicos. No presente momento, dado o contexto de intenso estresse financeiro por qual atravessa a maior parte dos entes públicos, a disponibilização desta ferramenta faz-se imprescindível. A aprovação do PLS 204 vai ao encontro do suprimento desta demanda. Mas dois pontos devem ficar claros: 1) a securitização de dívida ativa, dado a realidade do valor e do risco deste tipo de ativo, e dado o tamanho dos orçamentos dos entes públicos, representa apenas uma fonte adicional marginal de recursos, não devendo ser entendida como uma panaceia que irá curar os imensos buracos fiscais; e 2) se fosse no sentido do desenvolvimento de médio e longo prazos, tanto da gestão fiscal dos entes públicos, como do mercado de capitais, seria o FIDC que continuaria favorecido e destacado no texto do PLS 204 sendo votado hoje.

Do jeito que ficou o PL 204, como diriam os italianos, meno male!

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