Marcelo Cosac
É induvidoso que o mercado imobiliário brasileiro está vivendo uma excelente fase já há alguns anos. A Comissão de Valores Mobiliários ("CVM"), xerife de nosso Mercado de Capitais, tem atuado ativamente na criação e melhora de mecanismos regulamentares aplicáveis às operações de emissão e negociação pública de títulos e valores mobiliários com lastro em ativos imobiliários, em especial os Certificados de Recebíveis Imobiliários (“CRI”) e as cotas de Fundos de Investimento Imobiliário. A Instrução CVM nº 476, de 16 de janeiro de 2009, que regulamenta as ofertas públicas com esforços restritos de colocação de determinados valores mobiliários, é um bom exemplo disso. Tal norma criou um ambiente seguro (“safe harbor”) para que sejam realizadas emissões, mediante colocação pública, de CRI e outros títulos de dívida, sem a necessidade de registro da oferta com a CVM, desde que respeitadas as condições estabelecidas na referida norma.
O aumento significativo das operações de emissão de CRI acabou, por outro lado, gerando uma demanda maior do que a própria oferta de serviços de agentes fiduciários, que atuam no interesse dos titulares dos CRI emitidos com instituição de regime fiduciário. Esse problema se agravou em razão da limitação legal sobre a atuação de um agente fiduciário em mais de uma emissão da mesma companhia emissora, nos termos do §3º, alínea (a) do artigo 66 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976 (“Lei das S.A.”), que foi revogado pela Medida Provisória nº 517, de 31 de dezembro de 2010.
Não obstante a vedação acima, a escassez de um número suficiente de agentes fiduciários para atender à demanda do mercado de CRI acabou sendo suprida pela ausência de vedação a que essa atuação se desse em mais de uma série de CRI, desde que da mesma emissão da emissora. Em outras palavras, as contratações de um mesmo agente fiduciário acabam ocorrendo pelas emissoras para atuação em séries distintas, porém de uma mesma emissão de CRI; de outra forma, o número de operações de emissão de CRI seria infinitamente reduzido em razão da escassez de um número suficiente de agentes fiduciários para cumprir o papel exigido por lei em cada uma dessas emissões. Cumpre relembrar que a exigência de agente fiduciário em emissões de CRI decorre da instituição pela emissora do regime fiduciário, que confere maior proteção aos investidores desse papel, e como as emissões de CRI sem a instituição do regime fiduciário são raras, para não dizer praticamente inexistentes, seria impossível atender à demanda desse mercado se outra solução não fosse encontrada e colocada em prática pelos agentes de mercado.
Passo importante, sem dúvida, foi a edição pelo Governo Federal, com seu “chapéu” de legislador, da Medida Provisória nº 517/2010, convertida na Lei nº 12.431, de 24 de junho de 2011, que, em seu artigo 6º, ao dar nova redação ao artigo 66, §3º, “a”, da Lei das S.A., conferiu à CVM a prerrogativa de criar, por meio de norma, exceções à regra que determina a limitação de atuação por um agente fiduciário que já exerça a função em outra emissão de uma mesma emissora, conforme discutida acima. A fim de regular a matéria, a CVM colocou em Audiência Pública, em 19 de outubro de 2011, minuta de Instrução com o objetivo de alterar a Instrução CVM nº 28, de 23 de novembro de 1983, que é a norma que estabelece as regras de atuação dos agentes fiduciários em emissões de debêntures, cujos requisitos e incompatibilidades se aplicam à atuação dos agente fiduciários em emissões de CRI. Referida proposta de regulamentação visa à criação de requisitos aplicáveis tanto à atuação do agente fiduciário em mais de uma emissão de tais valores mobiliários da mesma emissora, sociedade coligada, controlada, controladora ou integrante do mesmo grupo, quanto à emissora de tais valores mobiliários. Basicamente, a proposta de regulamentação, se aprovada de acordo com seu atual texto, exigirá que o agente fiduciário dê tratamento equitativo aos titulares dos valores mobiliários objeto de sua atuação, e que a emissora divulgue aos investidores e ao mercado informações sobre a atuação do agente fiduciário nessas condições.
Mesmo assim, parece que a limitação até então vigente não deveria ser, desde o início, aplicável às emissões de CRI, em virtude de não haver, a princípio, potencial conflito de interesses na atuação por um mesmo agente fiduciário em mais de uma emissão de CRI de determinada companhia emissora, desde que tenha sido instituído o regime fiduciário sobre tais emissões. Mesmo que houvesse a possibilidade de se alegar conflito de interesses nesse caso, tal conflito estaria limitado à atuação dos agentes no que se refere ao concurso de credores que eventualmente seria aberto com relação ao patrimônio geral da emissora, que, como discutido abaixo, seria em um valor ínfimo no caso de uma emissora de CRI que atue com a instituição do regime fiduciário em todas suas emissões/séries, o que acaba sendo a regra no mercado.
Como se sabe, a instituição do regime fiduciário, nos termos da Lei nº 9.514/97, implica na constituição de um patrimônio separado, que, como seu próprio nome indica, consiste em um patrimônio segregado do patrimônio geral da emissora. Tal patrimônio segregado será integrado pela totalidade dos créditos imobiliários que servem de lastro para a respectiva emissão e destinado exclusivamente à liquidação dos CRI a que estiverem afetados, além do pagamento dos respectivos custos de administração e obrigações fiscais.
Nesse contexto, o agente fiduciário, dentro de suas atribuições, deve proteger os interesses da comunhão dos investidores dos CRI, acompanhando a atuação da companhia emissora na administração do patrimônio segregado, de forma a garantir que o produto da liquidação dos créditos imobiliários a ele afetados seja utilizado para o pagamento das obrigações inerentes aos CRI e demais obrigações relativas ao respectivo patrimônio. Ademais, o agente fiduciário deverá atuar contra qualquer ação ou fato que possa comprometer os créditos imobiliários afetados ao respectivo patrimônio segregado. Como se vê, a atuação do agente fiduciário é restrita e limitada, na medida em que está relacionada a uma porção determinada de créditos/direitos e obrigações, que não se confunde com o patrimônio geral da emissora, tampouco com os créditos/direitos e obrigações que servem de lastro de qualquer outra emissão de CRI pela mesma emissora.
Nesse particular, fica flagrante a diferença entre a atuação de um agente fiduciário na defesa de interesses de titulares de CRI (desde que sujeitos ao regime fiduciário) e na defesa de interesses de titulares de debêntures. No último caso, estaríamos tratando de uma dívida corporativa, em que o patrimônio geral da emissora, portanto uno e indivisível, responderia pelas dívidas contraídas junto aos investidores adquirentes desses valores mobiliários, independentemente de quantas fossem as emissões de títulos de dívida daquela emissora. Nas emissões de CRI com a instituição do regime fiduciário, é o patrimônio separado que responde pelas dívidas perante os respectivos investidores, e não o patrimônio geral da emissora (exceto em casos específicos, conforme previstos em lei - como são os exemplos de prejuízos sofridos pelos investidores em razão de administração temerária e desvio de finalidade do patrimônio separado pela emissora).
Assim, parece razoável concluir que a limitação prevista na alínea (a) do §3º do artigo 66 da Lei das S.A., ora alterada pela Lei 12.431/2011, não deveria ser aplicável às operações de securitização de créditos imobiliários realizadas com a instituição do regime fiduciário, por parecer muito baixo (senão mesmo inexistente) o risco de potencial conflito de interesses, considerado prejudicial à defesa dos interesses da comunhão dos investidores e impeditivo da atuação do agente fiduciário em mais de uma emissão de CRI da mesma emissora.
* Marcelo Cosac é Sócio da Tauil & Chequer Advogados Associado a Mayer Brown LLP